terça-feira, janeiro 27, 2009



Nota sobre Trocando em miúdos

Análise literária de Maria Helena Sansão Fontes


Em "Trocando em miúdos" (1978), o tom arrebatador presente em "Pedaço de mim" cede lugar a uma leve ironia com que se percebe a intenção de encobrir o sentimento de perda. A suposta superação do desconforto gerado pela dissolução do relacionamento amoroso é sintetizada pelo próprio título do poema que se reveste de elementos do cotidiano:
Os elementos representativos da intimidade conjugal revelados pelas expressões "medida do Bonfim"; "disco do Pixinguinha", "As marcas de amor nos nossos lençóis", são dessacralizados através da conotação irônica emprestada por palavras que encobrem a dor contida e velada do eu-emissor: "Aquela esperança de tudo se ajeitar/Pode esquecer/Aquela aliança você pode empenhar/ Ou derreter".
A dor da perda e o temor do descontínuo, que são tratados com intenso dilaceramento nos poemas analisados anteriormente, como "Eu te amo" ou "Pedaço de mim", aqui evidenciam intencional esvaziamento do pathos, revelando-se apenas em alguns versos em que o teor dramático supera a ironia que tenta encobri-lo: "Mas devo dizer que não vou lhe dar/ O enorme prazer de me ver chorar/ Nem vou Ihe cobrar pelo seu estrago/ Meu peito tão dilacerado".
A última estrofe retoma o tom de intencional desprendimento, e, através do verso "Eu levo a carteira de identidade", há a sutil aceitação da descontinuidade, resgatada com o fim do relacionamento amoroso.


Sem fantasia - Masculino e feminino em Chico BuarqueMaria Helena Sansão Fontes - Editora Graphia, 1999







Trocando em miúdos
Francis Hime - Chico Buarque/1978

Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim ?O resto é seu
Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças
Aquela esperança de tudo se ajeitar Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar Ou derreter
Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado
Aliás Aceite uma ajuda do seu futuro amor Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu
Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde

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