quarta-feira, janeiro 14, 2009

Cálice




Afasta de mim...


Uma obra de arte, ao mesmo tempo em que dialeticamente espelha seu momento histórico, coagula significados anteriores que tornarão possíveis uma compreensão racional e cria novos significados para os símbolos antigos, principalmente quando seu objetivo escapa aos limites sociais e toca o sofrimento humano universal. "Como beber dessa bebida amarga", nos pode tanto encaminhar para leitura de um drama pessoal, social ou humano.
A ditadura, a vida asfixiante, a censura num Brasil amordaçado e carente de palavras ou a natureza humana dilacerada pedindo um socorro inútil, "tragar a dor engolir a labuta", da maldição divina no Gênesis dirigida a todos os homens até os sofrimentos de um compositor brasileiro em 1973. "Mesmo calada a boca resta o peito", resgata o coração humano para além das palavras, mas corta a via de expressão dos sentimentos.
Prometeu novamente acorrentado divaga sem ter a quem gritar.
Um povo está amordaçado, "silêncio na cidade não se escuta", no entanto esse silêncio é o rumor e não um grito de revolta e compreensão. Pede-se "outra realidade menos morta", mas é impossível porque há "tanta mentira, tanta força bruta". É terrível "acordar calado", mas na vida não há revolta, no dia claro só há mentira, e o poeta ou o povo que ele mira, só "na calada da noite" se dana. Ele quer lançar um grito, mas esse grito também já se tornou como a própria realidade, "desumano".
Dizer "que é uma maneira de ser escutado" é partilhar do destino dos loucos, dos oprimidos, é ter cedido, sem querer, ao mundo que ele já não sabe como destruir. "Este silêncio todo me atordoa", não é o silêncio, mas ruído, o rumor de vozes incompreensíveis no burburinho da cidade. Ao mesmo tempo em que sonha a revolta, o poeta participa do mesmo torpor e impotência do seu povo: é impossível fugir da história: ela está por dentro, antes de estar por fora. Há uma espectativa que é "ver emergi o monstro da lagoa", mas esta espectativa é antes de tudo impotência.
O monstro esperado não pode ser em essência diferente do monstro que os rodeia e devora. O monstro é um só: a espectativa diante da lagoa. "Pai, afasta de mim esse cálice/de vinho tinto de sangue", o poeta quer escapar da cruz (realidade, censura, repressão), mesmo sabendo que nem ele nem Jesus podem ou puderam escapar. É um grito inutilmente humano de sofrimento. Os dois, o poeta e o Cristo, sabem seu destino trágico: esperar que tudo se consuma. "De muito gorda a porca já não anda", devorando seus filhos e os esmagando sob os pés. A mãe pátria os imola. E seus instrumentos já estão enferrujados (de sangue?): "De muito usada a faca já não corta". E sua impotência é explícita, "como é difícil, pai, abrir a porta". Todos estão bêbados, "esse pileque homérico no mundo", e sem humanidade e abertura, "de que adianta ter boa vontade".
A solução é irreal, "mesmo calado o peito resta a cuca": o mesmo peito que restava ainda na primeira estrofe aqui também já se dilacerou, mas a "cuca" não é revolucionária ou lúcida, mas "dos bêbados do centro da cidade". E esta "cuca" embriagada e narcisista dita a solução individualista: "quero inventar o meu próprio pecado/quero morrer do meu próprio veneno/quero perder de vez tua cabeça/minha cabeça perder teu juízo". A realidade induz ao poeta se perder de vez, "me embriagar até que alguém me esqueça".
Este poema ao mesmo tempo em que recria o medo e a opressão provocados pelo período ditatorial nos demonstra o quanto a impotência social preenche todo o tecido social e imaginário, não só o poeta sofre com o povo, mas também ele sofre do mesmo mal do povo.
Cantar seus sofrimentos é cantar as dores da mãe terra e pertencer aos mesmos descaminhos. Impossível sonhar a fuga da história. Daí a arte ser um dos elementos fundamentais de compreensão da realidade social, porque é através dela que o inexpresso grita e fala, o que só está no peito e nos olhos toma forma humana e deixa sua marca. E pede socorro saindo do inanimado.

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